"Ângela.- Eu me defrontei com o impossível de mim mesma.
Aí, eu desafinei sem querer. Irreal como música. Eu sonolenta e fantasmagórica na noite fechada e cheia de fumaça e nós ao redor da fortíssima lâmpada amarelada, luz que não deixa dormir, como os holofotes agudíssimos que os algozes acendem sobre a vítima da tortura para não deixá-la descansar.
Eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via. Mas cometi o erro grave de pensar."
"Autor.- Faz um dia muito bonito. Chove uma chuva muito fina, o céu está escuro e o mar revoltado. As almas esvoaçam no cemitério, os vampiros estão soltos, os morcegos encolhidos nas cavernas. Aconchego de mistério e terror. Se de repente o sol aparecesse eu daria um grito de pasmo e um mundo desabaria e nem daria tempo de todos fugirem da claridade. Os seres que se alimentam das trevas.
Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescinto da realidade porque posso ter tudo através do pensamento.
A realidade não me surpreende. Mas não é verdade: de repente tenho uma tal fome da "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescinto da realidade real e me aconchego em viver da imaginação."
Clarice Lispector
Trechos de 'Um Sopro de Vida (Pulsações)'
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