A noite acendeu as estrelas porque tinha medo da própria escuridão.


às vezes tenho vontade de entrar dentro de mim e arrancar fora este buraco que habita em mim, dai então, pular pra dentro dele!
Turmalina Antônia

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia

 "Ângela.- Um dia desses vi sobre a mesa uma talhada de melancia. E, assim sobre a mesa nua, parecia o riso de um louco (não sei explicar melhor). Não fosse a resignação a um mundo que me obriga a ser sensata, como eu gritaria de susto às alegres monstruosidades pré-históricas da terra. Só um infante não se espanta: também ele é uma alegre monstruosidade que se repete desde o começo da história do homem. Só depois é que vem o medo, o apaziguamento do medo, a negação do medo - a civilização enfim. Enquanto isso, sobre a mesa nua, a talhada gritante de melancia vermelha. Sou grata a meus olhos que ainda se espantam tanto. Ainda verei muitas coisas.  Para falar a verdade, mesmo sem melancia, uma mesa nua também é algo para se ver."
 "Ângela.- Eu me defrontei com o impossível de mim mesma.
Aí, eu desafinei sem querer. Irreal como música. Eu sonolenta e fantasmagórica na noite fechada e cheia de fumaça e nós ao redor da fortíssima lâmpada amarelada, luz que não deixa dormir, como os holofotes agudíssimos que os algozes acendem sobre a vítima da tortura para não deixá-la descansar.
Eu antes era uma mulher que sabia distinguir as coisas quando as via. Mas cometi o erro grave de pensar."
 "Autor.- Faz um dia muito bonito. Chove uma chuva muito fina, o céu está escuro e o mar revoltado. As almas esvoaçam no cemitério, os vampiros estão soltos, os morcegos encolhidos nas cavernas. Aconchego de mistério e terror. Se de repente o sol aparecesse eu daria um grito de pasmo e um mundo desabaria e nem daria tempo de todos fugirem da claridade. Os seres que se alimentam das trevas.
Só me interessa escrever quando eu me surpreendo com o que escrevo. Eu prescinto da realidade porque posso ter tudo através do pensamento.
A realidade não me surpreende. Mas não é verdade: de repente tenho uma tal fome da "coisa acontecer mesmo" que mordo num grito a realidade com os dentes dilacerantes. E depois suspiro sobre a presa cuja carne comi. E por muito tempo, de novo, prescinto da realidade real e me aconchego em viver da imaginação."

Clarice Lispector
Trechos de 'Um Sopro de Vida (Pulsações)'

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