"(...) Foi um sonho estranho o que teve Raskólhnikov. Sonhou com a sua passada infância, na aldeia. Tinha sete anos e passeava, num dia festivo, ao cair da tarde, com seu pai, para além da aldeia. O céu estava cinzento, o dia sufocante, e o lugar era exatamente o mesmo cuja visão guardava na sua memória; ainda mais: na sua memória via-o ainda mais apagado do que agora, no sonho. A cidade mostra-se aberta como a palma duma mão; em toda aquela periferia, um salgueiro branco; além, muito longe, quase no extremo do horizonte, negreja o bosque. A alguns passos de distância da última horta da aldeia, há uma taberna, uma grande taberna, pela qual sempre sentira antipatia, e até medo, quando passava em frente dela com seu pai. Havia sempre ali muita gente; vociferavam, riam, diziam impropérios com grande alvoroço, bebiam tão excessiva e imoderadamente e havia nela rixas com tanta freqüência! À volta da taberna viam-se sempre uns tipos completamente embriagados e ferozes, que andavam aos tropeções... Quando se encontrava com eles apertava-se com força contra o pai e todo ele tremia. Próximo da taberna passava a estrada, que verdadeiramente não era mais do que um atalho, sempre empoeirada, com um pó muito negro. A estrada faz uma curva ao longe, e a trezentos passos rodeia o cemitério da aldeia pela direita. A meio do campo-santo ergue-se uma igreja com a cúpula verde, na qual entrava duas vezes por ano com seu pai e sua mãe, para ouvir missa, quando faziam o ofício de réquiem pela avó, que falecera havia pouco tempo, e a qual não chegara a conhecer. Nesses casos levavam sempre consigo um pastel sobre um prato branco, em cima dum guardanapo, e o pastel era de açúcar, arroz e passas, colocadas em forma de cruz. Gostava daquela igreja e das suas velhas imagens, quase todas sem moldura, e do velho sacerdote de cabeça sempre a tremer. Junto do túmulo da avó, sobre o qual se estendia uma lousa, estava a pequena sepultura do irmão mais novo, que morrera com seis meses, e o qual também não chegara a conhecer, e de quem não podia recordar-se; mas disseram-lhe que tinha um irmãozinho, e ele, sempre que visitava o cemitério, persignava-se religiosa e respeitosamente diante da sepultura, fazia uma reverência e depunha sobre ela um beijo. Agora sonhava que ia com seu pai pela aldeia, pelo caminho do cemitério, e passava diante da taberna; ia pela mão do pai, e, cheio de medo, olhava para a taberna. Uma circunstância especial distraiu a sua atenção: parecia que dessa vez se celebrava ali alguma paródia: havia ali uma multidão de burgueses endomingados, de mulheres com os seus maridos e um grupo de pessoas. Estão todos embriagados, entoam canções, e junto da porta da taberna há uma tieliega, mas uma tieliega estranha. É uma dessas grandes às quais costumam jungir-se grandes cavalos de carga, e que se empregam para o transporte de mercadorias e tonéis de vinho. Agradava-lhe sempre contemplar aqueles grandes cavalos de carga, de longas crinas e grossas patas, que caminham tranqüilamente, com um passo manso, e que conduzem uma autêntica montanha sem mostrar o menor cansaço, como se a carga, em vez de esgotá-los, os aliviasse. Mas agora, coisa estranha, àquela tieliega enorme estava atrelado um mísero sendeiro, esquálido, pequeno, desses que os camponeses empregam; um desses cavalicoques aos quais - tinha-o ele visto com freqüência - carregam às vezes com grandes fardos de lenha ou feno, e quando o carro se atola, na lama ou nos sulcos, os camponeses batem-lhes com muita força, muita força, com os chicotes, às vezes até no próprio focinho ou nos olhos; isso fazia-lhe uma pena imensa, tão grande que quase vinham-lhe lágrimas aos olhos, e a mãe vinha então arrancá-lo da janela. Mas eis que, de repente, se travou uma grande escaramuça: da taberna saiu, gritando, cantando e com balalaicas, um bando de camponeses embriagados, embriagadíssimos, com blusas vermelhas e azuis, e a jaqueta sobre o ombro.
- Subam, subam! - grita um deles, ainda novo, com um grosso capote e uma caraça gorda, vermelha como um tomate. Levo-os a todos! Subam! Mas a seguir ouvem-se vozes e exclamações:
- Com esse sendeiro é que ele nos vai levar!
- Mas tu, Mikolka, estarás em teu perfeito juízo? Atrelar uma égua tão ordinária a uma tieliega destas!
- E esse espantalho já deve ter os seus vinte anos bem puxados, meus amigos!
- Subam, que os levo a todos! - tornou Mikolka gritando, e o cocheiro, que foi o primeiro a subir, tomou as rédeas na mão e ergueu-se em toda a sua estatura. - O nosso cavalo baio levou o Matviéi - gritou, já na tieliega -, e esta eguazinha, meus amigos, só serve para me fazer sofrer; mais valia matá-la, pois nem vale aquilo que come. Mas já disse: subam, que eu já a faço andar! E há de ir depressa! - E, brandindo o chicote, dispôsse a açoitar o pobre animal com prazer.
- Subamos então, vamos! - riam os do grupo. - Já sabem que há de correr a galope!
- Sim, deve haver pelo menos dez anos que não dá uma corridinha. - Vai dá-la agora.
- Não tenham pena dela, meus amigos; cada um pegue o seu chicote: preparem-se!
- Bom, então arreiem-lhe!
Todos sobem para a tieliega de Mikolka com risos e gracejos. Subiram seis homens e ainda havia lugar para mais. Levavam com eles uma mulher gorda e pintada. Vestia uma camisola de indiana vermelha, com um toucado de contas de vidro, botas pesadas nos pés, e descascava nozes e ria. À sua volta todos riam também, e, de fato, o caso não era para menos. Pensar que aquele pobre animal ia puxar a galope um carro tão pesado! Depois, dois dos moços que iam na tieliega brandiram os chicotes para ajudarem Mikolka. Ouve-se um eia! A eguazinha puxa com todas as suas forças, mas não vai a galope; mal consegue mover-se a passo, limitando-se a agitar as patas, arranhar o solo e dobrar-se sob os golpes dos três chicotes, que caem sobre ela como uma saraivada. Os risos redobram na tieliega e fora dela; mas Mikolka enfurece-se e com violência descarrega golpes terríveis sobre a pobre égua, como se acreditasse verdadeiramente que poderia ir a galope.
- Deixem-me subir a mim também, meus amigos! - grita entre a multidão um rapaz ao qual o espetáculo fez inveja.
- Sobe! Que subam todos! - grita Mikolka. - Levo-os a todos! Vou arrear-lhe!
Bate e torna a bater, e já não sabe com que há de fustigar o animal. - Bátiuchka, bátiuchka! - grita ele para o pai. - Bátiuchka, que está ele fazendo? Matam a pobre égua, bátiuchka!
- Vamos, vamos! - diz o pai. - Estão bêbados, não sabem o que fazem. Imbecis!
Vamo-nos embora, não fiques aí olhando! - E procura afastá-lo dali; mas ele solta-se da sua mão e, sem perceber o que faz, encaminha-se para o animal. Este já não pode mais; arqueja, pára, torna a puxar e está prestes a cair.
- Arreiem-lhe até que rebente! - grita Mikolka. - Já lhe falta pouco. Espera!
- Mas tu és cristão ou não és, meu bruto? - grita um velho, dentre o grupo.
- Onde é que se viu isso, um animalejo como esse puxar um carro desse tamanho? - acrescenta outro.
- Estás matando-a! - grita um terceiro.
- Não te incomodes. É minha! Posso fazer dela o que quiser. Subam! Subam todos!
Hei de fazer com que parta a galope!
De repente ouve-se uma gargalhada geral que abafa a voz de Mikolka: a pobre égua, sem suportar mais as brutais chicotadas, e embora sem forças, pôs-se a dar coices para o ar. Até os mais velhos não se puderam conter e começaram a rir. De fato, aquela égua, imprestável para qualquer serviço, ainda por cima se punha a dar coices! Outros rapazes do grupo brandiram também os chicotes e dirigiram-se para o animal para lhe fustigarem as ilhargas. Correu cada um de seu lado. - No focinho, nos olhos, dêemlhe nos olhos! - grita Mikolka.
- Uma canção, meus amigos! - gritou um dos da tieliega, e imediatamente todos lhe fizeram coro. Ouviu-se uma canção indecente, repicou um tambor e todos acompanharam o estribilho com assobios. A mulher descascava nozes e ria.
Ele se dirigiu, correndo, para o animal, avançou e pôde ver como batiam nos olhos do cavalo, nos próprios olhos! Pôs-se a chorar. Sentiu o coração oprimido e as lágrimas saltaram-lhe. Uma das chicotadas roçou-lhe pela cara, mas ele nem a sentiu; erguia as mãos, gritava, voltava-se para o velho de cabelo e barba brancos, que abanava a cabeça, condenando tudo aquilo. Uma mulher pegou-lhe por uma mão e quis levá-lo; mas ele
escapou-se e correu de novo para junto do animalzinho, que estava já nas últimas, mas recomeçara a escoicear para o ar.
- Ah, diabo! - gritava Mikolka furioso. Larga o chicote, torna a agachar-se e tira do fundo da tieliega um pau grosso e comprido, segura-o pela ponta com as duas mãos e, com todas as suas forças, descarrega-o sobre a égua.
- Vai matá-la! - gritam à sua volta. - Assim, acaba matando-a!
- É minha! - gritou Mikolka e, erguendo todo o braço, descarregou uma paulada sobre a égua.
- Dá-lhe, dá-lhe! Por que te deténs? - grita uma voz no meio daquela gente.
Mas Mikolka arvorou outra vez o cajado e, com todas as suas forças, deu outro golpe no costado do infeliz animal, que se inclina todo para os quartos traseiros; mas dá um safanão e puxa, puxa, com as suas últimas forças, por todos os lados, para arrastar o carro; mas por todos os lados o atacam seis chicotes, e novamente o pau se ergue e cai pela terceira vez, e depois pela quarta, calculadamente, com toda a força do braço que o brande. Mikolka está furioso por vê-la sucumbir de um só golpe.
- É dura! - gritam à sua volta.
- Vai cair já, sem falta, meus amigos; chegou a sua hora! - exclamou um entusiasta no meio do grupo.
- Com a machada, diabo! Acabemos com ela de uma vez! - gritou um terceiro.
- Vai... para o diabo que te carregue! Afastem-se! - gritava Mikolka, furioso; larga o pau, torna a agachar-se na tieliega, e tira uma alavanca de ferro. - Cuidado! - grita, e, com todas as suas forças, deita outra pancada na sua pobre égua. O golpe foi certeiro; o animalzinho cambaleia, recua, esforça-se ainda por puxar, mas a alavanca torna a cair sobre o seu dorso, e tomba então finalmente por terra, como se lhe tivessem desconjuntado as quatro extremidades de uma só vez.
- Até que enfim! - exclamou Mikolka, e, fora de si, salta da tieliega. Alguns rapazes, vermelhuscos e também embriagados, pegam o que encontram à mão: chicotes, paus, a tranca, e lançam-se sobre o animal moribundo. Mikolka está de pé ao seu lado e é já em vão que lhe bate com a alavanca no costado.
O pobre animal estende o focinho, respira com dificuldade, e morre. - Rebentou! - gritam no grupo.
- Por que não se deitou ela, correndo a galope?
- Era minha! - grita Mikolka com o pau na mão e os olhos injetados de sangue.
Parece pesaroso por não poder continuar batendo em alguém. - Sim, mas tu não és cristão - gritam já, no meio do grupo, muitas vozes. Mas o rapazinho, lívido, parece tresloucado. Lançando um grito, abre caminho por entre a gente, até a égua, pega-lhe no focinho morto, ensangüentado, e beija-o nos olhos e nos lábios... Depois, de repente, dá um salto e, arrebatado de furor, lança-se com os pequenos punhos cerrados contra Mikolka. Nesse momento, o pai, que havia já algum tempo o procurava, encontra-o finalmente, e tira-o do grupo. - Vamos, vamos! - diz-lhe. - Vamos para casa! - Bátiuchka, por que é que eles mataram o cavalinho? - soluça, e as palavras saem do seu peito opresso, transformadas em gritos.
- Estão embriagados, não sabem o que fazem; isso não nos interessa. Vamo-nos! - diz-lhe o pai; mas sente o peito oprimido. Esforça-se por ganhar coragem, dá um grito e desperta.
Acordou banhado em suor, com os cabelos encharcados, arquejando, e endireitou-se na cama, horrorizado.
- Louvado seja Deus, foi apenas um sonho! - exclamou, sentando-se ao pé duma árvore e lançando um profundo suspiro. - Mas que é isto? Estarei com febre? Que sonho tão terrível! Parecia-lhe que tinha o corpo todo moído, a alma cheia de dor e negrura. Apoiou os cotovelos sobre os joelhos e segurou a cabeça com ambas as mãos.
- Meu Deus! - exclamou. - E se ... e se eu pego de fato na machada, abro-lhe a cabeça e faço saltar os miolos... escorregarei no sangue quente e viscoso; quebrarei a fechadura, roubarei e pôr-me-ei a tremer, esconder-me-ei, todo manchado de sangue... com a machada... Meu Deus, será possível...? Tremia como a folha duma árvore, quando dizia isso.(...)"
trecho do livro Crime e Castigo - Fiodor Dostoievski